O silêncio de um solista na polifonia cotidiana
Peter Schulz
[17/12/2010]
ARTIGO
O silêncio de um solista na polifonia cotidiana
Peter Schulz (*)
O súbito silêncio de uma voz, na crescente polifonia que nos envolve, é um estranhamento ao qual rapidamente nos acostumamos. É uma pena, porque facilmente paramos de pensar no que essa ou aquela voz dizia. E, às vezes, algumas vozes não se fizeram ouvir o suficiente para que possamos simplesmente dispensá-las. era uma dessas vozes e que soava até um ano atrás. Jorge era de uma inquietude que contagiava, temperada por uma fina ironia, que engendrava aforismos que me causavam inveja. Não conheci pessoalmente – nem poderia – H. L. Menken, Groucho Marx ou mesmo Nelson Rodrigues, mas não faz mais mal: convivi com Jorge Tapia e quem o conheceu sabe do que estou falando. Jorge citava frequentemente um homônimo, Jorge Semprun, que abre como poucos uma janela ao dilema de que como nos arranjamos com a nossa própria história. Olhar por essa janela era confortável na companhia de Jorge, o Tapia, não o Semprun. Esses comentários fazem necessária a advertência que ele não era uma unanimidade e acredito que isso – a unanimidade - o aborreceria enormemente. Eu me atrevo a dizer que sinto saudade da sua generosidade intelectual com a qual convivi durante poucos anos, assessorando-o na Cocen.
Afinal, passado um ano, qual seria um legado que valeria a pena compartilhar nesse espaço, até agora tomado por um tom muito pessoal, pouco acadêmico? O que fica da sua constante vigília em relação ao futuro da Unicamp, talvez seu tema predileto? Concertação era outro tema caro e ai encontra-se uma possível chave, bem longe do seu currículo Lattes, cronicamente incompleto. A concertação, para Jorge, deveria se dar, de modo geral, em todas as instâncias e no meio acadêmico em particular. Assim, buscava sempre vislumbrar oportunidades em novas conexões entre os espaços já estabelecidos. Uma dessas oportunidades, concebida diretamente a partir de sua iniciativa acaba de se concretizar em um projeto temático sobre Mudanças Climáticas. A ideia nasceu com Jorge Tapia na Cocen, mas se materializou graças ao tão admirável, quanto discreto, empenho do pesquisador Jurandir Zullo. Desse projeto acredito que ainda leremos e ouviremos muito, mas nesse momento o que deve ficar registrado e associado à memória de Jorge Tapia? Trata-se de um esforço de abordagem de um problema complexo, Mudanças Climáticas, sendo visto a partir de múltiplos saberes, envolvendo desdobramentos muitas vezes tomados até então isoladamente. Nesse projeto envolvem-se vários Centros e Núcleos - Cepagri, CBMEG, Nepa, Nepo e Nudecri – e Institutos e Faculdades (IB, IE, IFCH, IG, IFGW, FCA, FCM), além de parceiros externos à Unicamp, como Embrapa, INPE e UFMG. Os números não constroem o caráter especial que merece destaque, mas sim sua diversidade. É uma concertação, sem dúvida, mas também um claro exemplo de missão integradora.
O itálico é para chamar a atenção a um conceito mal traduzido (scholarship of integration), que surge numa “revisitação” da academia, scholarship reconsidered – priorities of the professoriate, proposta pelo educador norte-americano Ernest Boyer há vinte anos. Este seu livro registra 4.670 citações no Google Acadêmico, mas está praticamente ausente das páginas web brasileiras. É estranho e é uma pena. Os textos originais merecem ser lidos porque aqui o recorte corre o risco de vulgarizar uma excelente ideia, mas mesmo assim corro o risco. Ernest Boyer revê o universo acadêmico e propõe no lugar da tríplice missão - ensino, pesquisa e extensão – um “quadrivium” de erudições ou saberes, que chamo aqui também de missões: descoberta (scholarship of discovery), ensino (scholarship of teaching), aplicação (scholarship of application) e integração (scholarship of integration). As três primeiras podem ser associadas à pesquisa, ensino e extensão, feitas as devidas ressalvas. A grande novidade está na quarta. A missão de integração é exatamente o que o nome sugere: estabelecer conexões entre as disciplinas, colocar as especialidades em um contexto mais amplo. Boyer identifica essa missão como imprescindível em uma universidade moderna, mas comenta a dificuldade de seu reconhecimento e avaliação. Apesar dessas dificuldades, não deveríamos nos esquivar do debate que essas ideias propõem, certamente uma tertúlia que animaria o Jorge, uma não unanimidade integradora.
Nessa crescente polifonia do cotidiano, talvez seja mesmo necessário reconsiderar nossas missões acadêmicas, mas isso não suprime a falta da fina ironia, do afiado humor, da generosidade intelectual, a busca por razões para fazer as coisas em vez de evitá-las. Transcendendo essas ausências, ficou um legado pessoal imprescindível: aprendi com o Jorge a perceber e apreciar a diversidade no mundo acadêmico. E não só isso.
(*) Peter Schulz é diretor-associado pro tempore da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) de Limeira e professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin"
Fonte:Portal da Unicamp