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28/04/2014

Insegurança alimentar afeta pequeno agricultor

Luiz Sugimoto, Jornal da Unicamp


Insegurança Alimentar


Foto: Antoninho Perri/Divulgação (Edição: Marcos/AlcScens) ju595-p3-a-700-edicao-marcos.jpg

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Os agricultores familiares ainda respondem por cerca de 70% da produção de alimentos para consumo interno no Brasil, mas uma boa parcela deles próprios está comendo mal e sofrendo de insegurança alimentar. É o que mostra a nutricionista e epidemiologista Verônica Gronau Luz na tese de doutorado em saúde coletiva orientada pelo professor Heleno Rodrigues Corrêa Filho, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, e coorientada pelo professor Carlos Eduardo Siqueira, da Universidade de Massachusetts (EUA). A autora sinaliza que a bucólica imagem da pequena propriedade rural ostentando uma cultura principal para garantir a renda da família, mais o pedaço de terra reservado ao arroz, feijão, legumes, verduras, frutas e alguns animais para servir à mesa da casa, parece que vai ficando mesmo no imaginário.

Focando o município de Ibiúna, estância turística do chamado “cinturão verde” paulista, Verônica Luz avalia a mudança do uso da terra devido à redução da produção de alimentos básicos e o impacto disso em termos de segurança alimentar e nutricional. Levantando os alimentos consumidos por agricultores para relacioná-los com o estado nutricional – circunferência da cintura (CC) e índice de massa corporal (IMC) –, a pesquisadora constatou que a insegurança alimentar desta população aumentou ao longo dos anos, embora a mudança do uso da terra não tenha sido o fator determinante. Como fatores de risco, ela aponta a diminuição do autoconsumo (daquilo que plantam), da renda e do acesso e disponibilidade de alimentos. Outra constatação é o elevado consumo de produtos ultraprocessados, em se tratando de famílias rurais.

“Como nutricionista, sempre tive interesse em estudar os grupos mais vulneráveis dos trabalhadores do campo. No mestrado foram os cortadores de cana e a relação com trabalho escravo, nutrição e desgaste físico. Agora no doutorado quis verificar como o aumento da produção de agrocombustíveis e da monocultura em geral afeta a segurança alimentar dos pequenos produtores, entendendo esta segurança como a garantia do acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades essenciais, conforme diz a lei. Excluí da pesquisa os agricultores orgânicos porque quis investigar a questão dos agrotóxicos: constatei seu uso excessivo também na agricultura familiar, o que me deixou muito decepcionada”, afirma a pesquisadora.

Verônica Luz explica que a escolha por Ibiúna se deve à diferença significativa que o município apresentou nos resultados do denominado Índice Alimento Básico/Não Alimento Básico, criado por um grupo de pesquisadores americanos que estudam o Brasil. O índice foi baseado nos dados da Pesquisa Agrícola Municipal (PAM) do IBGE, referentes a 1996 e 2006, os dois últimos censos agropecuários. E permite verificar o aumento ou a redução da produção de arroz, feijão, trigo e mandioca (alimentos básicos), bem como de cana, soja, eucalipto, milho, algodão e pasto (não alimentos básicos).

“Minha pesquisa confirmou os dados do índice, ou seja, que os pequenos agricultores de Ibiúna que antes cultivavam arroz (e também feijão) para consumo próprio, não mais o fazem, compram. Ainda plantam verduras e legumes, e poucos criam animais, mas os aumentos expressivos foram da produção de milho (que apresentou baixo consumo humano) e de eucalipto, culturas que consideram mais rentáveis. Esta redução do autoconsumo é preocupante do ponto de vista da segurança alimentar. Observamos ainda o excesso de alimentos ultraprocessados (embutidos, bolachas, macarrão instantâneo, sucos em pó) e baixo consumo de frutas e verduras. Sabemos que há uma mudança nos padrões de alimentação no Brasil, mas me admira que isso esteja ocorrendo tão rapidamente também no campo”, atesta a nutricionista.

Para esta pesquisa junto aos agricultores, Verônica Luz recorreu à Escala Brasileira de medida domiciliar da Segurança e Insegurança Alimentar (EBIA), traduzida e validada pela professora Ana Maria Segall Corrêa, do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, e sua equipe, a fim de medir as condições da família brasileira. Em 2004, a EBIA foi incorporada à PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE. A escala é capaz de avaliar e classificar os diferentes níveis de insegurança alimentar e nutricional (IAN) no domicílio: leve, moderada, grave e segurança alimentar. Dados da PNAD de 2004 indicaram que 34,9% dos domicílios particulares registraram algum grau de IAN, percentual que diminuiu para 30,2% em 2009, ainda representando 17,7 milhões de domicílios nesta situação.

“Basicamente, podemos considerar insegurança leve como da pessoa temerosa de que a comida acabe antes de ter dinheiro para repô-la, ou quando de fato acabe; moderada, quando os adultos começam a comer menos ou abrem mão de uma refeição, pensando mais nas crianças; e grave, quando até a criança come menos ou não tem o que comer. Em Ibiúna, a prevalência de insegurança entre domicílios de agricultores familiares foi de 45,8%, sendo 32,7% de nível leve e 13,1% de nível moderado, contra 54,2% de segurança. Um nível de IAN bem maior do que a mediana na área rural (35,1%), encontrada pela PNAD 2008-2009, e superior à da região Sudeste (23,2%) e da nacional (30,2%).
Um estudo acusa perfil mais grave em um assentamento rural (35,6% leve, 19,5% moderado, 10,4% grave e apenas 35,6% de segurança), demonstrando que a insegurança alimentar pode estar presente mesmo em domicílios que produzem alimentos”, informa a autora da tese.

A pesquisadora conta que a ideia inicial era de uma amostra com 300 domicílios, mas teve que se contentar com 107, devido a ameaças aos entrevistadores (inclusive de morte) que obrigaram o encerramento do trabalho de campo. “As disputas políticas e os problemas administrativos e de corrupção tornam Ibiúna uma cidade perigosa. Um colega do doutorado havia sido diretor da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e se demitiu ao identificar uma série de irregularidades, como grilagem, desmatamento ilegal, carvoarias e grupos com características de milícia que dominavam grande parte dos produtores rurais. Como ele fazia parte da nossa equipe, veio a desconfiança de que estivéssemos investigando situações ilegais."

Outros indicativos
Lembrando que a insegurança alimentar também está associada ao estado nutricional e à renda, Verônica Luz pôde confirmar o agravamento da situação em Ibiúna realizando medidas de circunferência da cintura e calculando o índice de massa corporal. “O aumento da obesidade central é um marcador de risco para doenças cardiovasculares e mais de 60% dos entrevistados apresentaram circunferência acima do limite. Em relação ao IMC, mais da metade (53,2%) tinha excesso de peso. Encontramos muitos casos de sobrepeso e mesmo de obesidade, apesar do trabalho muitas vezes pesado embaixo de sol – reflexo de que a pessoa até sofre de alguma restrição alimentar, mas é obesa, denunciando que a qualidade da dieta está prejudicando seu estado nutricional.”

Outro aspecto relevante, de acordo com a nutricionista, é que a população pesquisada possui renda muito baixa, apesar de Ibiúna registrar elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). “Setenta por cento dos agricultores com os quais conversamos recebiam menos de um salário mínimo per capita e, 50% destes, menos de meio salário mínimo. A renda, obviamente, também acaba interferindo na qualidade de vida e da alimentação. Alguns recebiam Bolsa Família e poucos podiam recorrer ao Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), por conta de irregularidades na documentação da propriedade, ainda mais em um município com tantos problemas.”

Uso de agrotóxicos
A pesquisa dedica especial atenção ao uso de agrotóxicos que afetam a saúde do trabalhador e também de equipamentos de proteção individual (EPIs). Foram encontramos 55 tipos diferentes de agrotóxicos, alguns bastante perigosos, com grande proporção dos que contêm Paraquat, Glifosato e derivados de 2,4D. Os inseticidas representavam 40% dos agrotóxicos utilizados e os herbicidas, ainda mais nocivos, 30%. Quanto aos EPIs, são desprezados por 14,7%, enquanto 46,1% utilizam apenas alguns. Os dados levantados, como observa a autora do estudo, são bastante preocupantes e endossam o alerta do Dossiê da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) sobre os efeitos do excesso de agrotóxicos tanto na monocultura como nas pequenas culturas.

“Observamos que 76,6% dos pequenos agricultores não contam com qualquer tipo de orientação e acabam influenciados pelas práticas da monocultura: 16% compram agrotóxicos por conta própria e 25% por receituário (prescrito muitas vezes por agrônomos que trabalham dentro das lojas); e 55% sob a orientação do vendedor, naturalmente interessado em vender quantidades maiores. O descarte dos recipientes – o ideal seria a devolução para o fabricante – também representa um problema grave, pois 20% dos agricultores optam por queimá-los, jogá-los no lixo comum ou depositá-los por longo tempo na propriedade, causando intoxicações ao meio ambiente e à própria família. O ‘uso seguro’ de agrotóxicos é algo completamente inviável neste e na grande maioria dos municípios brasileiros, como indicam diversos estudos, fazendo da alternativa agroecológica a melhor opção que existe”, opina a pesquisadora.

Política paradoxal
Por fim, Verônica Luz ressalta um paradoxo nas políticas governamentais para o setor agrícola, que desde os governos Lula têm dois focos principais: o incentivo à produção de monoculturas, que garantem o sucesso do agronegócio, e por outro lado, a promoção e apoio à agricultura familiar, visando à garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional. “É evidente a melhora no perfil de segurança alimentar no país depois da implantação do Programa Fome Zero (que tem como um dos eixos o Bolsa Família) e de incentivos à agricultura familiar e à produção orgânica. Em contrapartida, há o objetivo de incrementar a monocultura, o que fica evidente na diferença gritante em termos de financiamento: na safra 2013/2014, foram destinados 138 bilhões de reais para o agronegócio e apenas 26 bilhões para a agricultura familiar e 3 bilhões para a agroecologia. Minha maior preocupação, como nutricionista e epidemiologista, é que esta tendência se mantenha. Cada vez mais a agricultura familiar perde espaço para o agronegócio e talvez tenhamos que importar alimentos básicos, quando o Brasil é o país mais autossuficiente do mundo em termos de abastecimento interno.”

Publicação
Tese: “(In)segurança alimentar e nutricional em agricultores familiares e o uso da terra no munícipio de Ibiúna, SP”
Autora: Verônica Gronau Luz 
Orientador: Heleno Rodrigues Corrêa Filho
Coorientador: Carlos Eduardo Siqueira
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)


Fonte:Jornal da Unicamp



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